Há muitas sementes espalhadas pelo chão que, se não recolhidas, são levadas pelas enxurradas dos meses chuvosos.
18/03/2015
Caminhar - colhendo sementes
Escrito por Silvia Valentini em 18/03/2015 | Categoria (s): Sementes | Comentários: 0
Cresci em uma pequena cidade
do interior de São Paulo, sem transporte público. Na praça central havia muitas
árvores, a igreja matriz, um ponto de táxi e um ponto de charretes. A charrete
do Sr. Júlio era chamada para a diversão das crianças. O ponto alto do passeio
era quando a égua Boneca levantava o rabo e fazia cocô.
Usávamos o carro para
distâncias maiores, passeios em sítios e fazendas, para eventos nas cidades do
entorno. As outras opções eram a minha bicicleta inglesa Hercules 26 e a
caminhada. Caminhava-se muito pela cidade, sempre com a intenção de se chegar a
um ponto determinado: escola, trabalho, compras, lazer.
Hoje, morando na
Grande São Paulo, caminho diariamente pelo meu bairro. Mas não flanando; saio
com um objetivo, e procuro manter um ritmo que me dê a sensação de exercício
aeróbico, de saúde. Vou ao Correio, ao banco, aproveito para comprar o jornal,
caminho diariamente quase cinco quilômetros.
O padrão da caminhada
é quebrado quando encontro sementes no chão. Paro, olho para cima, tento
reconhecer a espécie, vejo se há fregueses no restaurante, recolho as sementes
em saquinhos que sempre carrego comigo. Se não identifico a árvore, fotografo e
já em casa busco nos livros, consulto o Vitor Lucato, a Juliana, do blog deverdecasa, autoridades no assunto ‘árvores
e sementes’.
Há muitas sementes espalhadas pelo chão que, se não recolhidas, são levadas pelas enxurradas dos meses chuvosos.
Cada caminhada reserva uma surpresa, nunca sei o que vou encontrar. Em janeiro, uma cercadura de pingo de ouro (Duranta erecta aurea), na entrada de um banco, estava enfeitada com uma população de lindos grilos. Ficaram lá por semanas, enquanto passei para conferir. Ou enquanto durou a comida.
Ainda nas notícias da fauna, voltando da
caminhada encontrei uma pequena cobra na entrada da minha garagem.
No que sobrou de uma árvore cortada,
nasceram cogumelos Orelha-de-pau (Polyporus
sanguineus), venenosos, porém lindos.
Mas nem todas as surpresas são boas. Outro
dia encontrei sementes no chão, olhei para cima e vi papagaios verdadeiros (Amazona aestiva) comendo bolinhas verdes. Pensei que pudesse ser da Azeitona
do mato (Vismia brasiliensis), e levei
os frutos para casa. Pesquisando, descobri que eram sementes de Santa Bárbara (Melia azedarach).
Pássaros e pessoas estão se encarregando de
disseminar espécies exóticas como Santa Bárbara, Leucena, pinheiros, eucaliptos, a palmeira australiana Seafórtia, e tantas outras. Os pássaros, por apreciarem os
frutos; os homens, por ignorância. A diversidade da flora brasileira é
mundialmente conhecida, mas, no Brasil, muitas pessoas optam por plantar o que
esta ‘na moda’ e que é facilmente encontrado em viveiros, em vasos. Desta maneira, as plantas exóticas vão
alterando os ambientes naturais e se constituindo uma ameaça para as nativas
que aos poucos vão perdendo espaço.
Caminhar é um exercício de reflexão, uma
atividade prazerosa que encanta. Alguns meses de caminhadas diárias e, pronto:
estamos viciados. Para aumentar o encanto, vale conferir as impressões de quem,
antes de nós, apreciou a arte de caminhar e escreveu a respeito: Thoreau, Rousseau,
W. Benjamin, F. Gros, G. Debord, Proust, Kerouac, Nietzsche, entre outros. Eis
aqui alguns trechos:
Acho
que não consigo preservar minha saúde e meu ânimo se não passar quatro horas
por dia, pelo menos – e geralmente é mais do que isso -, vagando através das
matas, dos morros e dos campos, absolutamente livre de todos os compromissos
terrenos. Você pode propor um centavo para ler meus pensamentos, ou até mil
libras. Quando às vezes lembro que os artesãos e os negociantes ficam em suas
lojas não só toda a manhã, mas toda a tarde também, sentados de pernas
cruzadas, tantos deles – como se as pernas fossem feitas para se sentar sobre
elas e não para ficar de pé ou caminhar sobre elas -, acho que merecem algum
crédito por não terem cometido o suicídio há muito tempo.
THOREAU, Henry David. Caminhando. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006
É
delicioso o entardecer, quando o corpo inteiro é um só sentido e aspira deleite
através de cada poro. Com estranha liberdade, percorro a Natureza, da qual sou
parte integrante. Enquanto caminho em mangas de camisa pela margem pedregosa do
lago, embora o tempo esteja frio e nublado, o vento se faça sentir e nada de
especial eu veja a atrair-me, todos os elementos me são extraordinariamente
afins. As enormes rãs coaxam para anunciar a noite, e a melodia dos noitibós
nasce com o vento que encrespa a superfície da água. A afinidade com as folhas
esvoaçantes do amieiro e do álamo quase me tira a respiração; contudo, tal como
acontece com o lago, a minha serenidade agita-se sem se desmanchar. Essas leves
ondas levantadas pelo vento do entardecer são tão alheias à tormenta como a
superfície lisa e espelhante. Embora já esteja escuro, o vento ainda sopra e
ruge pelo bosque, as ondas ainda se lançam e algumas criaturas embalam o sono
com os seus cantos. O repouso jamais é completo. Os animais ferozes não
repousam, e procuram nesta hora as suas presas; a raposa, o zorrilho e o coelho
vagam sem medo pelos campos e bosques. São as sentinelas da Natureza, elos que
unem os dias da vida animada.
THOREAU, Henry David. Walden ou A vida nos bosques. São Paulo
: Global Editora, 1985
O sopro do vento, o
zumbido dos insetos, o curso do riacho, o impacto das pisadas sobre a terra, é
todo um rumorejar que responde à nossa presença. Até mesmo a chuva. Uma chuva
leve e suave é um acompanhamento permanente, um murmúrio que se escuta, com
suas entonações, estalos, espaçamentos, pancadinhas distintas da água
ricocheteando na pedra, ou o longo tecer melodioso das cortinas de chuva caindo
com uma velocidade regular. É impossível estar só quando caminhamos, de tanto
que dispomos de coisas ao alcance dos olhos, que nos são dadas, que são nossas
pela tomada de posse inalienável da contemplação.
GROS, Frédéric. Caminhar,
uma filosofia. São Paulo : É Realizações, 2010
Nunca
pensei tanto, existi tanto, vivi tanto, fui tanto eu [...]
quanto nas viagens que fiz sozinho e a
pé.
ROUSSEAU, Jean
Jacques. As confissões. Rio de
Janeiro : José Olympio, 1948
Todos os anos, no dia de nossa chegada, para
sentir que estava mesmo em Combray, eu subia ao encontro do vento que corria
pelos valados e me fazia correr atrás de si. Tínhamos sempre o vento ao nosso
lado, para as bandas de Méséglise, sobre aquela planície convexa onde durante
léguas não encontra ele nenhum acidente de terreno.
[...]
Quantas
vezes depois daquele dia, em passeios para os lados de Guermantes, não me
pareceu ainda mais aflitivo do que antes não ter qualquer inclinação para as
letras e ser obrigado a renunciar de vez a tornar-me um escritor célebre? A
mágoa que eu sentia, enquanto ficava a sonhar sozinho, um pouco distante dos
outros, me fazia sofrer tanto que meu espírito, para não mais senti-la, por si
mesmo, numa espécie de inibição diante da dor, deixava inteiramente de pensar
em versos, em romances, em um futuro poético com o qual a minha falta de
talento me proibia de contar. Então, bem longe de todas essas preocupações
literárias e em nada relacionados a ela, eis que de repente um telhado, um
reflexo do sol sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar por um
prazer singular que me davam, e também por que tinham o aspecto de quem guarda,
além do que eu via, algo que me convidavam a vir pegar e que, apesar de meus
esforços, eu não conseguia descobrir. Como eu sentia que aquilo se encontrava
neles, eu ficava ali, imóvel, a contemplar, a respirar, a tentar ir, com o pensamento,
para além da imagem ou do cheiro.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido - No caminho de Swann. Porto Alegre :
Editora Globo, 1972
Paris
criou o tipo do flâneur. É estranho que não tenha sido Roma. Qual é a razão? Na
própria Roma, o sonho não percorreria ruas pré-traçadas? E não está aquela
cidade demasiadamente saturada de templos, praças cercadas e santuários nacionais,
para poder entrar inteira no sonho do transeunte, com cada paralelepípedo, cada
tabuleta de loja, cada degrau e cada portão? É possível explicá-lo em cada
parte também pelo caráter nacional dos italianos. Pois não foram os
forasteiros, mas eles, os próprios parisienses que fizeram de Paris a terra prometida
do flâneur, a “paisagem construída de pura vida”, como Hofmannsthal certa vez a chamou. Paisagem – é
nisso que a cidade de fato se transforma
para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus pólos
dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte : Editora
UFMG, 2006
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